Faz tempo que um filme não tinha me atordoado tanto quanto Estômago. Mas atordoado no bom sentido: gerando incômodo, reflexão, vontade de discuti-lo com alguém, vontade de aprender a cozinhar. Além disso, vários elementos garantem um certo realismo ao filme.
Antes de continuar, uma ressalta: o filme tem um pé no naturalismo. Ou seja, explora – ainda que dentro dos limites do aceitável (ao contrário de um outro brasileiro que não consegui continuar a ver: Feliz Natal – poderíamos dizer que Selton Mello como diretor é um ótimo ator) – as cruezas do homem (com toda ambigüidade que isso possa trazer, SAMIA, 2010). Mas Estômago vai além do naturalismo, não fica nessa exploração gratuita. Em tempo: os closes de comidas, as comidas estragadas, a prostituição descarada, a hierarquia e os estereótipos na prisão, as pessoas comendo deseducadamente (e é disso tudo que eu falo quando situo o filme naturalista) podem ser vistos como componentes da lógica discursiva da obra, ou seja, contribuem com o conteúdo do filme. Nesse aspecto, está perdoado o naturalismo. Outro elemento que chama o naturalismo é o título. Ora, no estômago, como dizem no próprio filme, “vai misturar tudo mesmo”. O que nos faz sentir o gosto da comida são as papilas gustativas! E como o filme trata de uma culinária refinada, de uma comida que provoca prazer, aí vai minha indicação de título: Papilas Gustativas.
E onde poderíamos situar o realismo? Bem, diversos elementos do filme convidam a nossa autoconsciência histórica, o nosso reconhecimento de que ali trata-se do gênero humano – onde, portanto, nos reconhecemos: a enorme humanidade e simplicidade do personagem principal – com o qual, inclusive, somos levados a criar relação de afetividade (ficamos incomodados com o fato de saber, desde o comecinho do filme, que ele foi preso e que, portanto, cometeu um crime. E, a propósito, não é fácil fazer um papel de paraibano pobre e simples sem cair no clichê, no estereótipo banal); o gosto pela boa comida (o que mais me deu vontade de comer foi a coxinha, quando a prostituta a come com uma voracidade naturalista); as dificuldades financeiras pelas quais passa um retirante nordestino numa cidade grande do Sudeste; a vontade de agradar por agradar; a existência de uma habilidade técnica desconectada de um supostamente necessário conhecimento de fato; a exploração do empregado pelo patrão e do mais fraco pelo mais forte (no caso da cela da prisão); a necessidade e possibilidade de se auto-afirmar frente a esses exploradores...
O cinema brasileiro vem me surpreendendo desde que vi O Pagador de Promessas, e Estômago é mais uma boa surpresa.