segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Papilas Gustativas

Faz tempo que um filme não tinha me atordoado tanto quanto Estômago. Mas atordoado no bom sentido: gerando incômodo, reflexão, vontade de discuti-lo com alguém, vontade de aprender a cozinhar. Além disso, vários elementos garantem um certo realismo ao filme.

Antes de continuar, uma ressalta: o filme tem um pé no naturalismo. Ou seja, explora – ainda que dentro dos limites do aceitável (ao contrário de um outro brasileiro que não consegui continuar a ver: Feliz Natal – poderíamos dizer que Selton Mello como diretor é um ótimo ator) – as cruezas do homem (com toda ambigüidade que isso possa trazer, SAMIA, 2010). Mas Estômago vai além do naturalismo, não fica nessa exploração gratuita. Em tempo: os closes de comidas, as comidas estragadas, a prostituição descarada, a hierarquia e os estereótipos na prisão, as pessoas comendo deseducadamente (e é disso tudo que eu falo quando situo o filme naturalista) podem ser vistos como componentes da lógica discursiva da obra, ou seja, contribuem com o conteúdo do filme. Nesse aspecto, está perdoado o naturalismo. Outro elemento que chama o naturalismo é o título. Ora, no estômago, como dizem no próprio filme, “vai misturar tudo mesmo”. O que nos faz sentir o gosto da comida são as papilas gustativas! E como o filme trata de uma culinária refinada, de uma comida que provoca prazer, aí vai minha indicação de título: Papilas Gustativas.

E onde poderíamos situar o realismo? Bem, diversos elementos do filme convidam a nossa autoconsciência histórica, o nosso reconhecimento de que ali trata-se do gênero humano – onde, portanto, nos reconhecemos: a enorme humanidade e simplicidade do personagem principal – com o qual, inclusive, somos levados a criar relação de afetividade (ficamos incomodados com o fato de saber, desde o comecinho do filme, que ele foi preso e que, portanto, cometeu um crime. E, a propósito, não é fácil fazer um papel de paraibano pobre e simples sem cair no clichê, no estereótipo banal); o gosto pela boa comida (o que mais me deu vontade de comer foi a coxinha, quando a prostituta a come com uma voracidade naturalista); as dificuldades financeiras pelas quais passa um retirante nordestino numa cidade grande do Sudeste; a vontade de agradar por agradar; a existência de uma habilidade técnica desconectada de um supostamente necessário conhecimento de fato; a exploração do empregado pelo patrão e do mais fraco pelo mais forte (no caso da cela da prisão); a necessidade e possibilidade de se auto-afirmar frente a esses exploradores...

O cinema brasileiro vem me surpreendendo desde que vi O Pagador de Promessas, e Estômago é mais uma boa surpresa.

domingo, 7 de março de 2010

Pedaço de filme

O que justifica a realização de uma pretensa obra de arte é o fato de ela dizer algo de uma forma que nunca antes fora dita e de uma fora que só através dela se pode dizer. Já de cara, portanto, o aparentemente aclamado curta-metragem mineiro “Pedaço de Papel” está descartado: apesar de ter como eixo uma ideia que, se bem trabalhada, poderia render uma boa história (a de seguir a trajetória de uma nota de dinheiro desde sua fabricação até seu destino final), o filme traz uma sucessão de clichês que todos estão cansados de ver não só na televisão e no cinema mas também na vida real. Para ver as desgraças que o homem comete em torno do dinheiro tal como vi eu definitivamente não precisaria de enfrentar fila e perder algumas horas do meu sábado.

E não é justificativa dizer que a produção teve baixíssimo orçamento e, apesar disso, conseguiu aplicar certos rigores técnicos que, não fosse a capacidade e dedicação dos produtores, não se conseguiria. Ora, se o curta tem a pretensão (e acho que as produções independentes devem mesmo ter essa pretensão) de ser uma alternativa à produção dominante, não adianta se dedicar ao máximo em torno da aplicação das técnicas: se o público quiser ver e ouvir efeitos especiais e se impressionar com grandiosidades formais ele vai a qualquer cinema comercial e vê um filme em 3D. Se quisermos ter alternativas (e, na verdade, o Brasil quase nunca teve – apenas em raras exceções como O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte) temos que, repetindo, contar histórias inovadoras, críticas, realistas. Esse antigo filme aqui supracitado não precisou de nenhum efeito especial para representar, até hoje, um retrato contumaz do brasileiro de uma forma que nunca foi contada e que só conseguimos perceber através daquele filme.

Falta-me comprovar a sucessão de clichês:
- A vida como um decurso de desgraças (isso, além de clichê, é mentira);
- A ideia de que o dinheiro que financia um crime é o mesmo que financiará outros sucessivos crimes (Me lembrei, inclusive, daquela que sempre vejo nos DVD’s que alugo: “O dinheiro que vai para a pirataria é o dinheiro que financia o tráfico”). Existem, dentre um crime e outro, múltiplas determinações e ramificações.
- Todos os crimes já foram contados mil vezes daquelas formas do filme: o dinheiro que se paga ao pastor é o mesmo que este usa para seu próprio conforto, gastando-o com coisas que os fiéis não poderiam saber, como divertir em boate; dessa boate sai uma stripper que é estuprada por policiais corruptos, um dos policiais é pai de um viciado em droga (que usa a nota para cheirar cocaína), e assim por diante. A cena em que um dos assaltantes compra a arma é risível: a câmera, de cima, mostra a arma sendo colocada na mesa em troca de um maço de dinheiro.

E contra a suposta crítica que o filme suscita sobre O homem faz desgraças e comete crimes por causa de um mero pedaço de papel. Primeiro: o dinheiro não é só um pedaço de papel. O próprio filme aliás já vai se contradizendo: em todas as transações que aparecem, não é só aquela nota de 10 que participa: ela é apenas uma dentre muitas outras (outras de mais valor inclusive). Aí já seriam pedaços de papel. Mas ainda assim: o dinheiro não é só pedaços de papel. O dinheiro, na sociedade capitalista, é o elemento de unificação entre as diferentes mercadorias. É a expressão dessa unificação em função do ouro, que é o elemento raro e durável que as trocas sempre procuraram. Marx, no primeiro capítulo dO Capital já nos mostra que essa forma que o valor ganhou é característica da sociedade capitalista e nos fecha os olhos para o que realmente existe em comum entre as mercadorias: o trabalho humano. E é isso que confere valor às mercadorias. O dinheiro é fruto de dispêndio de força de trabalho, não é só um pedaço de papel. E, além do mais, a sociedade capitalista é movida por esses pedaços de papel, de modo que não podemos considerar que o dinheiro é apenas isso: aqui, ele compra tudo. De qualquer forma, acho um absurdo tentar fazer qualquer coisa criticando o dinheiro sem conhecer o grande tratado de crítica do dinheiro na sociedade capitalista, que é O Capital.

Para finalizar, alguns elogios: o trabalho da produção (da qual conheço e até gosto de alguns integrantes) foi visivelmente árduo e, por serem quase todos iniciantes, digno de nota. A divulgação foi extremamente bem feita. E, em relação ao filme: de certo modo explorou bem a ideia do crime retornando para os ‘criminosos’ (apesar de que poderia ser ainda mais bem explorada: por exemplo, a primeira mulher do filme, que doa dinheiro para o pastor, poderia estar na loja em que ocorre o assalto); o final, que inclusive é talvez a única parte que dispensa aplicação técnica rigorosa, é a melhor parte do filme – sutil, sincero e comovente é também a única vez que o dinheiro não é usado desgraçadamente.

Isso para não falar no estilo do diretor.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Avatar avisa: o cinema acabou!

Pelo menos aquele tradicional cinema que conhecíamos (e que valorizávamos), em que via o dedo do diretor (mais do que o do cara dos efeitos especiais ou o do editor); em que sentíamos que aquilo era baseado na vida real e que, talvez por isso, nos incomodava; em que éramos levados a refletir não sobre os escatológicos efeitos coloridos e barulhos arrebatadores, mas sobre alguma condição humana, social ou histórica. A única e talvez forçada reflexão a que pode nos levar ‘Avatar’ é por ela mesma derrotada: essa grande exaltação da tecnologia e da indústria cultural é usada, paradoxalmente, para mostrar uma impossível vitória de inexistentes naturebas sobre a ambição humana de levar a tecnologia ao domínio total da natureza. Ferreira Gullar, em artigo na Folha de S. Paulo é enfático: “O filme é contraditório ao mostrar a vitória da cultura mítica, primitiva, de Pandora, sobre a mais avançada tecnologia, quando ele mesmo, como cinema, é uma exaltação da civilização tecnológica.” O artigo impressiona, inclusive, porque Gullar parecia ser um adepto dessas coloridas artes pós-modernas, como o concretismo.

Mais do que nunca, o cinema dialoga com as tendências das outras manifestações da indústria cultural: o apelo primordial é ao sensório; a técnica impressiona muito e o conteúdo é mero componente (a história de ‘Avatar’, inclusive, é banal e já foi contada muitas vezes por Holywood); o espectador fica atordoado com o espetáculo visual e sonoro (mas com a cabeça vazia).

O pessimista prognóstico de Adorno vai se confirmando: o esclarecimento vai ultrapassando seus próprios limites e, com o cientificismo e tecnicismo absolutos, contribui, contraditoriamente, à bestialização e aprisionamento das massas. A arte que nos leva a reflexão (como a boa literatura, o bom cinema, a boa música) vai perdendo todas suas batalhas: não conseguirá nunca mais competir com essas explosões em 3D. Se no século XIX o indivíduo tinha que se render à Balzac se quisesse fugir um pouco do pragmatismo do seu cotidiano (o que o levava, ainda que sem querer, a compreender melhor aquela França pós-Revolução); hoje ele vai ao cinema, põe óculos especiais e se diverte muito mais. É impossível querer que nossos filhos sejam diferenciados e gostem de ler e de fazer jogos de raciocínio: a sociedade os empurram para o espetáculo das cores e dos sons e, gradualmente, eles vão perdendo o que nem conquistaram: a capacidade de reflexão e crítica. Atualizamos Adorno: a regressão não é só na audição.

O realismo, pedra angular de toda arte que se pretende grande, virou piada de mau gosto. Vejamos bem: sobre ‘Avatar’, um ambientalista de uma ONG qualquer ou um infundado anti-imperialista poderia dizer que representa a desmedida ambição do homem pós-moderno em dominar os últimos lugares, bichos e povos que ainda não foram a ele subjugados (ainda que esses não o faça nada de mau); ou representa as eternas guerras compradas pelos EUA para ‘dominar o mundo’ (o ‘ataque preventivo’ utilizado pelos terráqueos no filme, inclusive, encaixa perfeitamente com o empreendido por Bush no Oriente Médio). Para o ambientalista eu poderia dizer que não precisa gastar 500 milhões de dólares para mostrar isso (enquanto o mundo sucumbe face ao aquecimento global e bilhões de pessoas passam por necessidades básicas); e também que não há qualquer chance de resquícios de ‘nativos’, ‘aborígenes’ e ‘índios’ chegar perto de vencer uma investida “civilizatória”. Essa, aliás, é uma briga já enterrada: bajulação de peles-vermelhas não têm a importância que acreditam. Para o anti-imperialista eu diria primeiro que o próprio filme, batendo recordes de público e de bilheteria, já representa por si próprio a dominância da indústria norte-americana no entretenimento mundial. E, depois, que as possíveis metáforas do filme são obscurecidas pelos espetaculares efeitos visuais e sonoros. Os sons, as cores, os bichos são tão arrebatadores e dinâmicos que não há qualquer chance dos já imbecilizados espectadores perceberem qualquer ‘mensagem nas entrelinhas’. O conteúdo aqui, apesar de ainda importante (se o “mau” vencesse, por exemplo, talvez o filme não seria tão aclamado) é secundário – confirmando a tendência ‘formalística’ da arte pós-moderna.

Infelizmente, esse que parece ser o caminho a ser seguido pelo cinema. Não haverá mais espaço para crítica, para grandes diretores, para realismo... O cinema será o que de melhor o homem tecnicamente produz, ainda que para isso (e talvez seja essa uma prerrogativa básica) tenha que sacrificar o conteúdo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A vez dos fracos

Se o que devemos nos questionar após lidar com uma pretensa obra de arte é se ela nos trouxe algo de útil, se nos acrescentou algo, o filme No Country for Old Men (Onde os Fracos Não Têm Vez, Joel e Ethan Coel, 2007) não merece atenção, pois a resposta é, sem dúvida, negativa. Um filme com uma história banal, demonstrada por meio de clichês, irrealidades e enorme suspense pode entreter, mas não poderia ser objeto de discussões supostamente relevantes. Infelizmente, estamos em um nível tão pífio de produção cultural (do ponto de vista qualitativo, mas não quantitativo, o que pode soar um paradoxo), que produtos um pouco diferenciados (ainda que do ponto de vista “interno” à sua arte), saltam aos olhos, como é o caso de No Country for Old Men.

O ponto alto da trama, a violência, é exposta de modo, por assim dizer, naturalista e banalizado: mata-se homens, friamente, como se mata gado; sangue é jorrado para todos os lados por todo o filme; apertam o gatilho como se apertassem um botão de celular. Isso não é ser realista; para o ser não necessita de tamanha explicitação, de tamanha banalização. Mesmo que fosse uma história real – o que seria impossível, haja vista a enorme e irreal quantidade de coincidências forçadas – não precisaria utilizar daquilo que temos chamado atenção, basta sugerir – e é assim que fazem os grandes realistas (não existe sequer uma cena de sexo nas milhares de páginas da Comédia Humana, de Balzac). Apesar da extraordinária interpretação de Javier Bardem, a sua pretensa loucura é quase que injustificável e mesmo risível (como na cena da lojinha do Posto Texaco e na cena em que o Chigurh tenta, enquanto dirige por sobre uma ponte, atirar em um pássaro). A loucura de Hamlet é plenamente fundamentada e justificável. Até os fantasmas de Macbeth são mais reais, ou pelo menos mais representativos dessa necessidade humana de cobiça.

E o pior de tudo, é que No Country... comete tantas banalizações justamente por meio de visíveis clichês e coincidências forçadas. Passemos primeiro aos clichês. A primeira cena do filme, uma recorrência “interna”: planos abertos do Texas, a voz de um xerife velho relembrando o passado. Por mais que seja uma característica autoral dos irmãos Coen (e que não sei por que consideram uma marca tão grandiosa, tão inovadora), desde os antigos faroestes já estamos cansados dessa história de “um xerife do Oeste norte-americano – terra dita sem lei – prestes a se aposentar, se defronta com uma trama que envolve assassinatos, dinheiro e drogas, e vai, a todo custo, procurar resolvê-la”. Esse xerife quer defender a mocinha, que é tratada de modo tão machista quanto mais poderia ser enquanto lugar-comum: basta lembrar o caçador Moss chegando tarde em sua casa(-trailler) sem querer dar explicações de onde estava, sentando folgadamente na sofá onde estava sua esposa, e abrindo uma cerveja. E quer maior estupidez (e, como não podia deixar de ser, clichê) do que ele se decidir, no meio da noite, levar água para o mexicano que havia visto quase morto no local do crime? Essa cena me fez lembrar aqueles filmes de terror que víamos quando criança, como Pânico ou Jason: a mocinha sempre voltava, estupidamente, ao encontro do vilão, a despeito do apelo dos espectadores. Claro que a asneira nunca é vã: o vilão aparece. No filme, como se não bastasse, outro carro surge, e, claro, na hora em que Moss ainda está no local. E esse tipo de coincidência é extremamente recorrente no filme e fica até cansativo, por exemplo, nas inúmeras escapatórias por um triz. Dentre essas, as que consegui notar foram: Moss escapa do cão que o persegue ao longo do rio por um triz; o xerife chega na casa de Moss e não pega o vilão por um triz; o vilão não pega a maleta no sótão do hotel por um triz; no outro hotel, Moss descobre o chip na maleta e consegue escapar por um triz; nessa mesma perseguição, ele abaixa a cabeça dentro da caminhonete fração de segundos antes de vir um tiro na sua direção e, mais à frente na cena, Chigurh pula do tiro e não é morto por um triz; o xerife chega, de uma longa viagem, segundos atrasado no hotel em que Moss enfim é morto, não pegando os criminosos por um triz; na última cena, a ambulância não pega Chigurh por um triz. Enfim, se se reparar bem, a construção do suspense do filme, além de, como já dito, contar com elementos naturalistas e banalizar a violência, é feita por vários lugares-comuns e coincidências forçadas. Nesse sentido é que tenho dito que o filme não se aproxima da realidade – e essa aproximação é que deveria ser a preocupação maior de toda obra que se pretenda arte. Por fim, mais um clichê trivial: o caçador, extremamente ensangüentado, passa para o outro lado da fronteira (o lado mexicano, naturalmente) sem ser notado por um policial que dormia, e, para não ficar só nisso, é acordado por um bando de músicos mexicanos bigodudos que tocam por dinheiro. Será que o filme é de comédia?

domingo, 13 de setembro de 2009

Reflexo da realidade

É estupidamente óbvio que mesmo um rabisco qualquer que eu faça numa folha será sempre, ainda que indiretamente, um reflexo da realidade, pois qualquer manifestação subjetiva está, de alguma forma, inserida no mundo objetivo e portanto determinada pelas condições reais objetivas, pelas leis gerais que regem a sociedade.

Porém, para que esse reflexo da realidade seja digno de apreciação e estudo, faz-se necessário que o artista tenha pleno domínio da técnica E seja, ainda que ele não se dê conta disso, um fecundo conhecedor e observador dos sujeitos, contradições e necessidades de seu tempo histórico. É bom ressaltar a conjunção aditiva “e”: não basta ter apenas grande habilidade técnica ou apenas grande conhecimento da realidade. Com aquela pode se produzir um entretenimento vazio ou um objeto de decoração (que também têm sua validade, mas não enquanto arte), e com esta pode se produzir um livro de história ou um tratado de filosofia (que também têm sua validade, mas não enquanto arte).

Desse ponto de vista, um grande artista é aquele que consegue narrar com maestria alguma situação (mesmo que aparentemente banal) com realismo, ou seja, sem se furtar da realidade com vistas a propagar a sua ideologia de classe ou a vender seus livros com mais facilidade. Apesar de que, com alguma raridade, aparecem grandes artistas que tem justamente este ou aquele objetivo, mas que conseguem, na sua arte, superá-los. O mais corriqueiro é que os objetivos almejados enquanto pessoa, e não enquanto artista sejam superados: Balzac, um decadente burguês, queria fazer parte da decadente aristocracia, porém, em sua Comédia Humana, ele ridiculariza (pois demonstra a realidade, de fato ridícula) a vida tanto da burguesia que sonha em ser aristocracia quanto da aristocracia que se crê digna de apreciação. Acho difícil que alguém que escreva já pensando em ganhar dinheiro ou em propagandear esta ou aquela ideologia possa ser merecedor de atenção.

Assim justificamos e elevamos a importância da arte: nos faz conhecer mais e melhor o mundo, e, o que é ainda melhor, juntamente com indiscutível deleite estético.

sábado, 5 de setembro de 2009

Shakespeare por Kurosawa - I

Homem Mau Dorme Bem e Hamlet

De maneira sutil mas não fortuita ou banal, o filme Homem Mau Dorme Bem (Wairu yatsu hodo yoku nemuru, Kurosawa,1960) se remete a Hamlet (1602), a obra mais conhecida de William Shakespeare. Além da época, da narrativa e do modo de abordagem distintos – o que não causa espanto em virtude de se tratar de uma adaptação oriental de uma obra ocidental – a história do filme é também completamente diferente. Kurosawa utilizou-se dos elementos fundamentais da obra shakespeariana para construir um contexto dramático e uma realidade assustadora, que reforça a tese de que ele contribuiu sobremaneira para a confirmação da universalidade daquela obra do maior dramaturgo inglês. Aparentemente, são imiscíveis a história de uma longínqua disputa pelo trono dinamarquês com a história da corrupção em uma corporação pública japonesa no pós-Segunda Guerra. Porém, a reação à(s) morte(s), a recorrente ideia do suicídio, a espionagem, a dúvida do amor, a traição e, sobretudo, o desejo e a necessidade de vingança fazem confluir as duas obras. Além disso, Kurosawa nos dá pistas factuais dessa sua intertextualidade: a ideia da vingança surge a partir da conversa do protagonista com um “fantasma” (em Hamlet é um fantasma de fato – o do pai dele – e no filme é um homem que para todos os outros estaria morto – a conversa, inclusive, se dá enquanto vêem o seu próprio enterro); o filho quer, por toda a trama, vingar a morte do pai, e é isso o que o assola e o que faz tomar drásticas decisões (em Homem Mau Dorme Bem, Nishi resolve casar com a filha do suposto assassino do seu pai; enquanto Hamlet mata Polônio, discute com sua mãe, finge – segundo ele próprio – ser louco); há uma complexidade na relação do protagonista com os outros que o cercam por causa da promessa de vingança; o vilão de ambos é da própria família (o tio de Hamlet e o sogro de Nishi); e o assassinato é cometido com vistas à subida de posição na hierarquia em questão (o pai de Nishi, presidente da corporação, é morto pelo vice; o pai de Hamlet, rei da Dinamarca, é morto pelo tio, primeiro sucessor do trono). Outro grande trunfo de Kurosawa nessa reminiscência a Shakespeare é a de colocar o Estado como uma corporação, e vice-versa, ambos à mercê das mãos muitas vezes cruéis de seus donos, que, a favor de suas promoções e privilégios, pouco se importam com seus súditos.

A mais patente diferença entre as obras diz respeito às atitudes dos protagonistas frente à vingança que prometem. Enquanto Hamlet hesita por diversas vezes, se auto-condenando de covarde e só sendo capaz de consumar o ato quando consegue finalmente agir por instinto, mesclando aspectos racionais com irracionais; Nishi não tem essa inércia que possui e mistifica o herói de Shakespeare, deixando transparecer, desde o início, sua vontade e sua capacidade em efetivar a vingança – apesar de também hesitar em alguns momentos, quando por exemplo deixa de jogar um dos assassinos de seu pai pela janela e quando não encara o maior responsável pelo crime, chegando mesmo a dizer “Não é fácil odiar o demônio. Você tem que atiçar sua própria fúria, até se tornar o próprio diabo”).

Apesar, portanto, de não ser uma efetiva adaptação da peça de Shakespeare, Homem Mau Dorme Bem consegue captar com maestria os elementos cruciais de Hamlet, também fazendo o espectador lidar, através de diferentes caminhos (haja vista que são diferentes singularidades), com os valores genéricos supracitados tão caros à arte e, causal e naturalmente, à nossa própria existência.

Esse texto faz parte do meu artigo em construção "SHAKESPEARE POR KUROSAWA: A CONFIRMAÇÃO DA UNIVERSALIDADE DAS OBRAS DO DRAMATURGO INGLÊS", que deve ser publicado em breve. Além de Homem Mau Dorme Bem, haverá no artigo a análise de Trono Machado de Sangue (que é baseado em Macbeth) e Ran (baseado em Rei Lear).

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Diálogos Transdisciplinares – Diálogo Primeiro

Sócrates: Ó meu caro Jornalista, que bom ter-me contigo! O quão me lisonjeia vossa presença na horda de Alcebíades! Muito me agrada vossa sabedoria, vossa perspicácia, vossa objetividade, vossa erudição, vosso trato com a linguagem!
Jornalista: Ó Sócrates, caçoas de mim? Não sou mais que um mero reprodutor da realidade. Não tenho outra função senão transmitir aos nossos conspícuos cidadãos um pedaço de tudo que acontece.
Sócrates: Diz-me, pois, que és um instrumento necessário e útil para o conhecimento da realidade? Mas não acha, meu nobre e bom amigo, que a arte não cumpre melhor essa função? Não seria a arte quem consegue, através de seu realismo, de sua magia, ser mais capaz do que o jornalismo em nos transmitir melhor a realidade concreta?
Jornalista: Ora, meu caro Sócrates, não entendo muito bem vossos distintos termos. Bem o sabes que não conheço muito de arte. Sou pago e sempre estudei para conseguir transmitir com propriedade e ética o que se passa nessa nossa Pólis. Tenho um modelo dentro do qual encaixo os fatos. Quando algum acontecimento importante assola a Grécia, apenas recolho os dados, com o pouco que sei sobre o assunto, e construo uma reportagem.
Sócrates: Diz-me, célebre Jornalista, que não conheces de arte. Mas diz-me, com opulência, que transmite a realidade. Não entendo como podes transmitir a realidade sem conhecer a arte. Mas, ó deuses, prefiro morrer a tentar entendê-lo! Se não conheces de arte, que eu, ingenuamente, julgava ser um conhecimento tão necessário aos seus exercícios profissionais, do que é que conheces? No que és especialista?
Jornalistas: Por Zeus, Sócrates, não me repudie, nem duvide de minhas astúcias! Sei arte o suficiente para transmitir da realização de seus eventos! É essa mesma minha função, saber um pouco de tudo, para que abarque todas as aspirações de nossos cidadãos!
Sócrates: Não vos entendo, caro Jornalista. Como podes saber um pouco de tudo? Não seria impossível conhecer de fato a parte de um todo sem conhecer o todo? É como construir uma casa sem entender as estruturas dos alicerces... Sabe-se de tijolos, mas nada de alicerces. Então a casa cai. Há como conhecer um tijolo sem conhecer uma casa, sem conhecer a aplicação prática da coletividade dos tijolos?
Jornalista: Tu me embaraças, caro Sócrates!
Sócrates: Ora Jornalista, certamente que saber um pouco de tudo é saber muito mais do que qualquer especialista, que só sabe muito de uma coisa. Homero sabia muito sobre a Guerra de Tróia, mas certamente que desconhecia os ofícios da aritmética, da biologia e da ourivesaria. Deduzo de vossa antecedente frase, caro Jornalista, que tu sabes um pouco suficientemente para transmitir sobre aritmética, mecânica e ourivesaria. Diz-me, por Zeus, o que és soldagem?
Jornalista: Não sei vos responder.
Sócrates: E modelagem?
Jornalista: Admito não saber.
Sócrates: Não sabes isso, não quer responder ou não sabes nada sobre ourivesaria?
Jornalista: Sei o suficiente.
Sócrates: Ó que homem útil! Ainda não me ensinaram como saber de ourivesaria sem saber de soldagem e de modelagem! Enfim, achei-o! Diga-me Jornalista, por último, há diferença entre um ourives e um jornalista?
Jornalista: Por Zeus Sócrates! A diferença é gritante!
Sócrates: E qual é, astuto Jornalista?
Jornalista: O ourives faz um trabalho puramente mecânico, Sócrates. Ele pega o ouro bruto e transforma em jóias e ornamentos. O jornalista...
Sócrates: Ora, ó Jornalista, tu não me dissestes ainda há pouco que tu pegas um acontecimento importante, quando o há, e encaixa em um modelo? Ainda não entendo a diferença...
Jornalista: Por Zeus Sócrates...